segunda-feira, 18 de maio de 2009

FILHA-DE-SANTO

FILHA-DE-SANTO
Semira Adler Vainsencher
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
O candomblé é uma das religiões afro-brasileiras praticadas no Brasil. Ele chegou com o tráfico de escravos da África Ocidental, mais precisamente, através dos sacerdotes africanos escravizados, entre 1549 e 1888, que, nesta terra, continuaram respeitando os seus Deuses e propagando as suas culturas. De origem totêmica e familiar, a religião foi chamada de anímica porque tem por base a anima (alma) da natureza.

O candomblé (ou culto dos Orixás) não deve ser confundido com certas religiões afro-derivadas, tais como o voodoo haitiano, a santeria cubana e o obeah, que foram cultuadas de forma independente e são desconhecidos no país. Mesmo tendo sido confinado à população de escravos, reprimido pelos colonizadores lusos, proibido pela Igreja Católica (a religião dos portugueses) e criminalizado por Governos (que o consideravam como uma espécie de feitiçaria), o candomblé não somente resistiu, mas tem se expandido, consideravelmente, desde o final da escravatura.

Para sobreviver às perseguições, os adeptos do candomblé passaram a associar os Orixás aos santos católicos, em um processo de sincretismo religioso. Assim sendo, a Rainha dos mares e dos oceanos - Iemanjá - foi associada a Nossa Senhora da Conceição; Iansã - a Deusa dos ventos e das tempestades - a Santa Bárbara; Oxalá - o pai de todos os Orixás - ao Senhor do Bonfim; e assim por diante.

Cerca de dezesseis dos mais de duzentos Orixás existentes na África Ocidental, são cultuados no Brasil, tais como Oxumaré (o Deus do arco-íris); Exu (o mensageiro entre os homens e os Deuses); Iroco (o Deus dos pobres); Logunedé (o Deus dos navegantes); Nanã (a Deusa da fertilidade); Obá (a Deusa dos rios); Ogum (o Deus da guerra); Omolu (o Deus das doenças e da cura); Ossaim (o Deus das folhas e das ervas medicinais); Oxalá (o Deus da criação); Oxóssi (o Deus da caça); Oxum (a Deusa das águas doces e da riqueza); e Xangô (o Deus do fogo, do trovão e da justiça). Por sua vez, cada Orixá possui uma história bastante rica, que engloba os seus gostos, temperamento, cores, comidas, cantigas, rezas, tabus e ligação com a natureza.

Presentemente, o candomblé possui seguidores de todas as classes sociais. Cerca de três milhões de pessoas (1,5% da população total do país) declararam ser aquela a sua religião. E, no tocante aos templos, apenas na cidade de Salvador, constam dois mil duzentos e trinta terreiros, registrados na Federação Baiana de Cultos Afro-brasileiros (Fenatrab). Segundo esta Federação, o número de fiéis deve ser bem superior ao coletado, já que uma parcela significativa da população que freqüenta os terreiros prefere, ainda, declarar-se católica, tendo em vista as discriminações.

No candomblé, a Filha-de-Santo representa um verdadeiro sacerdote, servindo de instrumento, de corpo, de cavalo, ou de médium, para o Orixá que nela se incorpora, em certas ocasiões do culto. Nesses momentos, ela possui os mesmos gestos, timbre de voz, danças e cantigas que o Santo. Essas escolhas, em geral, têm lugar dentro dos próprios cultos e, durante a revelação dos Orixás, a futura Filha-de-Santo é tomada por tremores e sobressaltos.

Para assumir tal papel, no entanto, ela necessita fazer um curso no terreiro, visando aprender o ritual, o cerimonial, o preparo de iguarias especiais, os cantos, as danças e a confecção da indumentária do seu Santo. A iniciação da Filha-de-Santo é bastante lenta, dela se exigindo extrema dedicação. Neste sentido, enquanto vida tiver, ela pertencerá ao seu Orixá, trabalhará para ele e, com a renda proveniente de seu trabalho, auxiliará a manter o candomblé onde foi feita.

Existem diversas gradações no tocante às Filhas-de-Santos (Cascudo, 1998). A Abiã, por exemplo, cumpre apenas certos ritos parciais. A iniciante oficial - que possui pouco tempo de iniciação e só passou por algumas cerimônias - é chamada de Yauô. A serva da Filha-de-Santo é chamada Ékédi. Como não tem poderes para incorporar os Santos, ela é empregada em algumas funções subalternas, dedicando-se a cuidar das vestimentas e dos adornos da Filha-de-Santo.

Há, inclusive, toda uma hierarquia, que vai de sete em sete anos, na qual a Yauô passa a ser Vodum - estágio onde a Filha-de-Santo passa a usar um colar especial, confeccionado com pedacinhos de coral e contas vermelhas, chamado rungéfe. E a Ébomin - a Filha-de-Santo que possui uma iniciação completa, ou seja, mais de sete anos de feita - pode funcionar na plenitude do conhecimento ritualista, porque já está capacitada para fazê-lo.

Em se tratando da chefia dos rituais, o Pai-de-Santo (Babalorixá) e a Mãe-de-Santo (Alourixá ou Ialorixá) recebem os fiéis nos terreiros, em sessões individuais, revelando o Orixá de cada um, por tradição, mediante o jogo de búzios. A identificação do Orixá, ou do Santo, ajudará o fiel a compreender a sua própria personalidade, bem como equilibrar as suas energias (axés) com aquelas do seu Orixá.

Como um Orixá escolhe o seu instrumento, a sua médium?

Geralmente, isso é feito de duas maneiras. Em primeiro lugar, o Orixá pode agir de forma direta, atuando para que a Filha-de-Santo entre em um determinado estado de possessão, no qual passa a chorar, a gritar, a subir em árvores e a falar uma língua estrangeira. Ou, em segundo lugar, de forma indireta, fazendo com que ela encontre determinadas pedras, conchas ou pedaços de ferro. Nesta fase, é preciso entregar tais objetos à sua Mãe ou Pai-de-Santo e, eles, de imediato, identificarão o seu Orixá.

Depois que a futura Filha-de-Santo entrega os objetos encontrados, é necessário que junte dinheiro para custear a sua cerimônia de iniciação, que ocorrerá em um local reservado, ao ar livre. De acordo com o ritual, ela começará tomando um banho com folhas aromáticas e, em seguida, trocando de roupa. Quando retornar ao terreiro, terá que se recolher em um determinado cômodo, e ficará aguardando o preparo do fetiche a quem vai servir (o sacrifício de certos animais).

A seguir, terá sua cabeça raspada, lavada com uma infusão de plantas e esfregada com bastante força. Ao ingerir, também, essas infusões, a Filha-de-Santo vivenciará o fenômeno da entrada do Santo, que muitos pesquisadores acreditam se tratar de um estado psicopatológico especial. Após essa etapa, é a vez de uma cerimônia denominada Efun, na qual a cabeça e as faces da iniciante são pintadas com determinados traços de cor, e com as disposições características da origem étnica, em alusão às cicatrizes utilizadas, no passado, por muitas tribos e nações importantes. Vale ressaltar que essas cicatrizes, hoje, são substituídas por marcas feitas com tintas.

Depois desse processo, a Filha-de-Santo deverá permanecer em casa durante um ano, aproximadamente, ficando proibida de sair, de ter relações sexuais e de ingerir determinados alimentos. Em seguida, ocorrerá uma nova cerimônia chamada Dia de dar o nome, na qual será derramado, sobre a cabeça da iniciada, o sangue dos animais sacrificados. Após essa etapa, enfim, a Filha-de-Santo é considerada feita.

Um dado importante merece ser registrado: quanto menor for o tempo de iniciação, mais impuro e deturpado será o significado religioso do candomblé. Tudo se passa como se ele perdesse aquilo que possui de mais sagrado, a sua pureza religiosa. É importante salientar, também, que, nos terreiros, as celebrações, as invocações e os cânticos são feitos em dialetos africanos, ao som de atabaques, variando segundo o Orixá homenageado.

Inserida nesse processo ritualista, a Filha-de-Santo - ou a sacerdotisa dos Orixás - representa uma religiosa a serviço dos Deuses da natureza: aqueles mesmos Deuses que chegaram ao país em navios negreiros, incrustados nos grilhões dos escravos, juntamente com as suas comidas, indumentárias, línguas, músicas, danças, festas, crenças e rituais.


Fontes consultadas:

AMARAL, Rita de C. P.; ITTNER, Tânia R. C.; BAHER, Vivien I. Coleção: folclore em atividades. Blumenau: Edições Sabida, [s. d.].

ANCESTRALIDADE. Disponível em:
Acesso em: 20 ago. 2006.

ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil folclore; histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, 1982.

CANDOMBLÉ. Disponível em:
Acesso em: 19 nov. 2006.

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CANDOMBLÉ. Disponível em:
Acesso em: 20 ago. 2006.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1954.

CASCUDO, Luís da Câmara. Lendas Brasileiras: 21 histórias criadas pela imaginação do nosso povo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s. d.].

CONHECIMENTOS sobre a cozinha de santo. Disponível em:
Acesso em: 20 ago. 2006.

FILHO-DE-SANTO. Disponível em:
Acesso em: 19 nov. 2006.

HORTA, Carlos Felipe de Melo Marques (Org.). O grande livro do folclore. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2000.

MÚSICA e identidade no candomblé. Disponível em:
Acesso em: 20 ago. 2006.

RIBEIRO, José. Brasil no folclore. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, 1970.

VARELLA, João S. das Chagas. Cozinha de santo. Rio de Janeiro: Editora Espiritualista, 1972.

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